Pensatempo: Pepe Escobar: “Golpe na Líbia foi sustentado pela cobertura da Al Jazeera”

sábado, 5 de novembro de 2011

Pepe Escobar: “Golpe na Líbia foi sustentado pela cobertura da Al Jazeera”



“Estratégia de militarização planetária inclui a OTAN como braço armado da ONU dentro desse conceito espúrio e ridículo de responsabilidade de proteção de civis, onde eles são mortos – de verdade - pela intervenção do neo-imperialismo”
 
Entre as muitas contribuições trazidas pelos mais de 600 participantes de 23 países ao 1º Encontro Mundial de Blogueiros, realizado entre os dias 24 e 27 de outubro em Foz do Iguaçu-PR, cabe destaque a do veterano jornalista Pepe Escobar. Debatedor do painel “Experiências na Ásia e África”, o colunista do Ásia Times (Japão) e articulista da rede Al Jazeera (Qatar) demonstrou a “relação direta” entre “o golpe militar ocorrido na Líbia” – com envolvimento de tropas da Inglaterra, França e Catar, que sustentaram em terra a agressão promovida pelo Pentágono - e a abjeta propaganda pró-invasão pelas agências internacionais de “notícias”.

A OTAN sempre quis uma base na Líbia, lembrou Escobar, “mas isso só seria possível com um novo governo”. Na sua avaliação, além das imensas riquezas energéticas do país – petróleo e gás -, os Estados Unidos tinham interesse na invasão por uma razão muito mais séria: sua perspectiva de “guerra infinita”, bem ao gosto do complexo militar-industrial e dos grandes bancos, que veem na China um objetivo estratégico a longo prazo. Com este objetivo, explicou, foi conformado “o Comando da África, o Africom, fundado em 2008, durante a administração Bush, que é basicamente a ideia do Pentágono de ir contra os contratos comerciais que o país asiático faz com o continente inteiro. Pelo menos 25 países africanos têm contratos muito próximos”. “Assim, se para comprar óleo, gás e minerais, os chineses pagam um bom preço e se comprometem a fazer o que for solicitado, desde a construção de mini Itaipus e escolas a redes de fibra ótica, distribuindo celular para todo mundo e chegando com sua tecnologia, etc., os EUA precisavam agir. E o que fizeram diante da tomada dos mercados, o que tinham a oferecer? Militarização, esta é a estratégia do Pentágono”.

Recapitulando, observou, o Africom queria a sua primeira guerra na África dentro de uma ação geopolítica mais ofensiva, tanto em relação ao continente, como para acumular forças em direção à Ásia. “O Africom teve de ser estabelecido em Stuttgart, na Alemanha, porque nenhum país africano queria que se instalasse no continente, a começar pela Líbia. O próprio Kadafi fez campanha: ‘não podemos aceitar os imperialistas dentro da nossa casa’. E aí eles entraram pela porta de trás”.

CÚPULA DA OTAN

O jornalista lembra que “houve uma cúpula da OTAN em Lisboa em dezembro do ano passado onde foi traçado um mapa sobre o que iriam fazer até 2020”.  Ali, explicou, “está mais ou menos delineado, se lê nas entrelinhas, bem claro: transformar o Mediterrâneo inteiro num lago da OTAN, controlado pela OTAN. No passado, na Roma antiga, se chamava mare nostrum, ‘nosso mar’ em latim. No século 21 é uma nova versão, só que agora militarizada. E havia três países que não são membros da OTAN ou que não têm acesso aos milhões de dólares dos seus programas: Líbano, Síria e Líbia. A Líbia era o alvo imediato e já tinha o pretexto criado ali no teatro de operações. A Síria é o próximo”.

Desta forma, “o golpe militar foi equacionado na França e começou no ano passado, em outubro, quando o chefe do protocolo de Kadafi defectou e foi parar em Paris. Então a inteligência francesa chegou perto dele e organizaram a ação com a OTAN", explicou Escobar. Ele relata que chegou a estar em contato com jovens da chamada “google generation” do leste – “região mais conservadora da Líbia”, que inicialmente haviam realizado mobilizações “pró-democracia”, que acabaram “fornecendo o estopim”, “logo usado por oportunistas aliados em Cirenaica, no leste, e por infiltrados em Trípoli, que na última hora iam cair fora”.
Perguntei a Pepe sobre como via a denúncia do WiliLeaks de que o diretor geral da rede de televisão Al Jazeera, Wadah Khanfar, atuou em consonância com os interesses do Departamento de Estado dos EUA após a invasão do Iraque, o que o obrigou a se demitir. Lembrei as conversas que vieram à tona, onde ficou comprovado que Khanfar concordou em retirar, a pedido do governo estadunidense, "duas imagens que mostravam crianças feridas num hospital e uma mulher com um rosto gravemente ferido”, entre outras ações em prol duma cobertura mais branda sobre os abusos cometidos pelas tropas de ocupação. Pepe disse que a partir da saída de Khanfar, “houve a mudança na direção e a substituição por um tecnocrata próximo ao emir”. Ou seja, uma ação ainda mais escancarada em prol dos EUA.

De acordo com o jornalista, o “Catar é um tema tabu no Oriente Médio”, um ponto “fundamental que ficou oculto até o final por causa da Al Jazeera, que fez uma cobertura totalmente parcial”. “Eu posso falar isso porque escrevo para a Al Jazeera, conheço de dentro. Cobriram a guerra como se fosse um filme de Hollywood, de forma maniqueísta. Todo o rebelde da OTAN era mocinho e a família Kadafi e o resto do sistema inteiro era pior do que o Darth Vader. Isso causou um imenso desconforto dentro da rede, de jornalistas que conheciam a Líbia. Kadafi era muito popular, principalmente no Oeste”.

E o que moveu a rede de televisão do Catar, que cumpriu um papel chave anteriormente na denúncia da Guerra do Iraque, a abdicar do jornalismo? “Foi a conquista de contratos comerciais”, respondeu, o motivo principal que levou o emir do Catar – proprietário da rede - a transformar a Al Jazeera em sucursal dos interesses imperiais.  “Queriam solidificar a aliança deles com a OTAN. Tanto assim que eles forneceram seis Mirages que participaram dos seletivos bombardeios contra o oeste da Líbia, a parte mais desenvolvida. Foram mais de 40 mil bombas durante quase sete meses”.

Diante da situação de guerra civil em que o país se viu mergulhado, acrescentou Pepe, se aponta que há “pelo menos” 50 mil mortos. “Pelo menos 48 mil pelos bombardeios da OTAN e por seus aliados armados, oficiais ingleses, franceses e do Catar”. Soma-se a isso, “o pessoal da Al-Qaeda, que também foi treinado por forças especiais do Catar disfarçadas de rebeldes da OTAN, pois eles falam árabe sem sotaque”.

PREPARAÇÃO DO TERRENO

Conforme esclareceu o jornalista, os protestos iniciais na conservadora – e base fundamentalista - Bengazi, foram dirigidos por um “bando de oportunistas que incluía agentes da CIA, que viveram 20 anos na Virgínia [estado dos EUA] - e que voltaram dizendo que agora eram comandantes militares -, tropas especiais britânicas em solo líbio e a inteligência francesa em solo líbio”. Os invasores, explicou, tinham “ligação direta com o Libyan Islamic Fighting Group (Grupo de Luta Islâmica na Líbia) - que era filiado à Al-Qaeda”. “Vários deles haviam treinado no Afeganistão, num campo ao norte de Kabul em que estive antes de 2001. E já me falavam de líbios naquela época”.

Os “rebeldes da OTAN”, enfatiza, se concentraram desde o início nas cidades mais reacionárias, ao leste. A contestação principal partia de “líbios islâmicos radicais filiados à Al-Qaeda, alguns deles que viraram até comandantes desta organização”. “Inclusive um personagem muito importante, Abdul Akim Belhaj, (hoje chefe militar do Conselho Nacional de Transição - CNT) era o emir deste grupo. Ele foi capturado em Bangcoc, por incrível que pareça, numa das operações clandestinas da CIA. Foi torturado em Bangcoc, enviado para Guantánamo, e os americanos resolveram devolvê-lo para a Líbia, onde ficou preso até o ano passado. E foi libertado por quem? Por Saif, o filho de Kadafi, que tinha um plano de reconciliação nacional que passava pela libertação de presos políticos importantes. Assim, mais de 200 radicais do leste foram soltos em 2010. Esse pessoal também se agregou ao golpe militar, que depois virou algo muito mais complexo”.

Para justificar a necessidade de mobilização de tropas em socorro de seus “rebeldes”, a “mídia corporativa” começou a brandir a necessidade de “ajuda humanitária”, frisou Pepe. Então, começaram a divulgar que “o regime de Kadafi iria assassinar 700 mil pessoas à beira do Mediterrâneo, o que é completamente absurdo”. Assim, quando os “rebeldes da OTAN viram que não iam conseguir, vieram com a famosa: Vamos chamar a ONU para nos defender ou fazer a ONU instalar uma zona de exclusão aérea. Tudo sob a justificativa de impedir que os jatos de Kadafi metralhassem civis, o que nunca ficou provado por ninguém, nem pela Anistia Internacional nem pela Human Rights, que passaram mais de três meses lá”. De um modo ou de outro, a repetição sistemática pelas agências internacionais de tais mentiras, “criou a abertura perfeita para a aliança atlanticista franco-inglesa-americana”.

De acordo com Pepe Escobar, os franceses também tinham motivos para “declarar sua inimizade eterna por Kadafi”, que afrontava os interesses de expansão neocolonial no continente. O líder líbio também “havia prometido comprar seus jatos Rafales, mas quando viu os Sukhoi russos disse: prefiro estes, são melhores. Os franceses ficaram desesperados. Kadafi tinha dito que deixaria eles montarem uma central nuclear na Líbia e também voltou atrás. Ele tinha um plano de transformar a economia africana unificando os países, através do dinar de ouro, uma moeda africana baseada nas reservas de ouro da Líbia que chegam a US$ 150 bilhões. Com isso ele poderia financiar um programa de investimentos não só no país, como na África subsaariana negra. Esses mesmos, 1,5 milhão de subsaarianos negros que vivem na Líbia, muitos dos quais agora estão sendo torturados, massacrados, eliminados”. “Já está provado que houve uma série de massacres promovidos por estes famosos rebeldes da OTAN, conhecidos hoje como o ‘novo poder’, contra negros africanos, sob a ridícula alegação de que todos eram mercenários de Kadafi”. Tudo porque este enorme contingente de negros, explicou o jornalista, tinha o reconhecimento legal pelo governo líbio: “carta de residência, direito aos programas sociais, acesso às melhores escolas líbias, etc.”. Em poucas palavras, um péssimo exemplo de integração e solidariedade a partir do fortalecimento da auto-estima, da educação.

Infelizmente, destacou Pepe Escobar, “o que está em curso é uma estratégia de militarização planetária, que inclui a OTAN como braço armado da ONU dentro deste conceito espúrio e ridículo de responsabilidade de proteção de civis, onde eles são mortos – de verdade - pela intervenção do neo-imperialismo”.

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