Pensatempo: setembro 2013

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Guatemala: campo de provas e de extermínio dos EUA e Israel

Leonardo Wexell Severo/ComunicaSul


Os muros da Guatemala cobram justiça. Foto: Joka Madruga
“Na Guatemala, o terror se transformou num espetáculo: soldados, comissionados e patrulheiros civis estupravam as mulheres diante dos maridos e dos filhos. O zelo anticomunista e o ódio racista se disseminaram no desempenho da contrainsurgência. As matanças eram inconcebivelmente brutais. Os soldados matavam crianças, lançando-as contra rochas na presença dos pais. Extraíam órgãos e fetos, amputavam a genitália e os membros perpetravam estupros múltiplos e em massa e queimavam vivas algumas vítimas”.

O relato extraído do livro “A revolução guatemalteca”, (Greg Grandin, Editora UNESP, 2004), descreve os pormenores da política de terrorismo de Estado promovida pelos governos dos EUA – com apoio de Israel - contra os movimentos de resistência da nação maia nos anos 70 e 80.

Vale lembrar, destaca o autor, que “as práticas ensaiadas na Guatemala – como as desestabilizações e os esquadrões da morte dirigidos por agências de inteligência profissionalizadas – propagaram-se por toda a região nas décadas subsequentes”. E ganharam o mundo, afirmamos nós, como o comprovam as invasões do Iraque e da Líbia, onde o número de mercenários superou em muito o do exército regular. O fato destas “empresas” estarem entre as principais doadoras das bilionárias campanhas eleitorais estadunidenses não é um mero detalhe. Assim como o fato do secretário de Estado norte-americano Foster Dulles, advogado/acionista da United Fruit, ter comandado a campanha - ao lado de seu irmão Allen Dulles, chefe da CIA – pela derrubada do presidente guatemalteco Jacobo Árbenz, consumada em 28 de junho de 1954. O motor do golpe que levou ao poder o coronel Castillo Armas foi a nacionalização de terras da “Frutera” e sua distribuição a camponeses pobres e a indígenas.

PROPAGANDA DE GUERRA

No momento em que o Império retoma a propaganda de guerra contra o povo sírio e seu governo, a leitura contribui para refletirmos sobre os padrões de manipulação. Uma “amnésia oficial” patrocinada pelos grandes conglomerados privados de comunicação para dissipar a responsabilidade estadunidense na deposição de governos nacionalistas como o de Árbenz. Ali, lembra Grandin, “a CIA se serviu de práticas tomadas de empréstimo à psicologia social, a Hollywood e à indústria publicitária para erodir a lealdade” e gerar aversões, numa “campanha de desinformação concertada” em favor da United Fruit, grande latifundiária e também proprietária das rodovias, ferrovias e portos do país.

Com riqueza de dados e citações, a obra desnuda os meandros da participação de Israel como coringa ianque ao longo da agressão, desde o começo dos anos 70, até o período “mais cruel da repressão”, entre 1982 e 1983, com a chegada ao poder do general Efrain Ríos Montt. É neste momento, recorda o autor, “quando os massacres se tornaram simultaneamente mais precisos e mais horrendos”. Em recente visita à Guatemala, pudemos ouvir inúmeros relatos de sindicalistas sobre tais sevícias. Como não comparar com a prática nazi-israelense dos ventres abertos à ponta de baioneta, quando lembramos os 30 anos do massacre do campo de refugiados palestinos de Sabra e Chatila? Como esquecer dos soldados sionistas, em pleno século 21, praticando tiro ao alvo nos olhos das crianças palestinas, vazados pelas balas de aço revestidas com borracha?

O GENOCIDA RÍOS MONTT

Em maio de 2013, no julgamento em que Ríos Montt foi condenado por “genocídio” pelas atrocidades cometidas, a juíza Jazmín Barrios possibilitou que 149 mulheres da etnia ixil rememorassem o horror dos “estupros coletivos” praticados contra suas aldeias há três décadas. “O primeiro que perguntaram foi se dávamos comida aos guerrilheiros. Respondi que sequer os conhecia. Na casa estava minha filha, de uns 17 anos, e dois dos seus irmãos pequenos. Os soldados arrancaram sua roupa, separaram suas pernas com força e começaram a estuprá-la em frente às crianças, que choravam de medo”.

A contundência da narrativa de senhoras de 50 a 60 anos amplificou o circo de horrores que transborda dos informes da Recuperação da Memória Histórica (Remhi) da Conferência Episcopal Guatemalteca (CEG), e da Comissão de Esclarecimento Histórico, patrocinada pela ONU. “Os estupros foram utilizados como instrumento de tortura e escravidão sexual, com a violação reiterada da vítima”. “Se tens marido, então te estupram entre cinco e dez soldados. Se és solteira são 15 ou 20”. “Meu tio ia por um caminho com sua filha e uma neta, quando uma patrulha militar conseguiu agarrar as meninas. A criança de sete anos mataram, porque foram tantos os soldados que passaram sobre ela...”. “Alguns soldados estavam doentes de sífilis ou de gonorreia. A ordem foi que estes passassem por último, quando os sãos já tivessem estuprado”.
Soam ridículas as alegações de que tantos e tão flagrantes abusos tenham sido ações individuais e é risível o empenho das agências internacionais de notícia – as mesmas que blindaram os crimes perpetrados - para que seja esquecido o entranhado envolvimento dos EUA e do atual presidente guatemalteco, Otto Pérez Molina, no passado que não passou.

“Foi um serviço completo, com planejamento até o último detalhe”, relata Hector Gramajo, líder militar guatemalteco, lembrando que as zonas de resistência popular à entrega do país ao estrangeiro eram apontadas como “vermelhas”. Nelas, a luta deveria ser “sem quartel: todos deveriam ser executados e as aldeias arrasadas”. (Schirmer, J. The Guatemalan military Project: a violence called democracy. Philadelphia: University of Pensylvania, Press, 1998).

AS MENTIRAS DE REAGAN

Foi durante a administração do presidente estadunidense Ronald Reagan, lembra Greg Grandin, que “o governo da Guatemala cometeu suas piores atrocidades”. “Com a ascensão de Ríos Montt ao poder e o início da campanha de terra arrasada, o governo Reagan passou a fazer um vigoroso lobby pela retomada da ajuda militar”, destaca o autor, “conquanto um documento liberado da CIA deixe claro que, já em fevereiro de 1982, os analistas norte-americanos estivessem cientes das crescentes violações dos direitos humanos”. Em dezembro de 1982, no “auge da sanguinolência”, o presidente cowboy encontrou-se em Honduras com Ríos Montt, “o general do Exército que, na qualidade de chefe do Estado, presidia a pior fase do genocídio” e declarou que este era “injustiçado” pelos críticos e estava “totalmente comprometido com a democracia” (The New York Times, 5.12.1982).

Em janeiro de 1983, de olho na venda de armamentos ao país e no apoio da ditadura guatemalteca aos “contras” - mercenários que combatiam a revolução sandinista na Nicarágua -, o porta-voz do Departamento de Estado, John Hughes, comemora que Ríos Montt havia conseguido um “declínio extraordinário” nos abusos cometidos.

Apesar do forte bloqueio, as informações sobre os crimes começaram a fugir do controle. Mesmo dentro dos EUA, a opinião pública passou a pressionar contra o apoio ao regime fascista. Então, a participação israelense como “testa-de-ferro” na Guatemala caiu como uma luva para “contornar a proibição” votada pelo Congresso.

Obviamente, várias empresas estadunidenses também se utilizaram de artifícios para desrespeitar a decisão que defendia a vida, mas contrariava os seus negócios. “Leon Kopyt, o presidente da Mass Transit Systems Corporation da Filadélfia, contou a um jornalista que fazia anos que sua empresa fornecia ao governo guatemalteco miras laser de fuzil, embora a solicitação de venda desses produtos tivesse sido indeferida pelo Office of Munitions. A Mass Transit driblou a proibição do Congresso simplesmente comprando as miras laser de uma empresa estrangeira e revendendo-as ao exército guatemalteco. Por sua própria natureza, é difícil determinar a extensão dessas linhas de suprimento militar ilícito”, relata o autor.

PARCERIA SANGUINÁRIA

De uma ou de outra forma, “a operação militar israelense-guatemalteca se iniciou plenamente em 1974, quando os dois países firmaram um acordo sobre armas”. (Rubenberg, C. A. Israel and Guatemala: arms, advice anda counterinsurgency, Middle East Report, May-June, 1986)

Assim, “em questão de meses”, chegaram ao país aviões, carros blindados, fuzis de artilharia, submetralhadoras Uzi e fuzis de assalto Galil, assim como técnicos e instrutores militares israelenses. Quando os EUA cortaram parte da ajuda em 1977, Israel passou a ser o principal fornecedor de armamento e tecnologia militar da Guatemala (Lusane, C. Israeli Arms in Central America, Covert Action, winter, 1984).

“A partir de 1977, Israel mandou para a Guatemala onze aviões de transporte Arava, dez tanques, 120 mil toneladas de munição, três barcos patrulheiros Tair, um novo sistema tático de rádio e um grande carregamento de morteiros de 81 milímetros, bazucas, granadas e submetralhadoras Uzi. E, em 1982, as tropas guatemaltecas receberam, em Puerto Barrios, dez tanques no valor de 34 milhões de dólares. A CIA e o Pentágono providenciaram para que a carga chegasse da Bélgica, passando pela República Dominicana” (Nairn, A, The Guatemala connection, The Progressive, maio 1986).

Também nessa década, aponta Greg Grandin, o governo israelense ajudou a instalar a Indústria Militar Guatemalteca, em Alta Verapaz, para fabricar munições para os fuzis Galil – que já monopolizavam o país - e as submetralhadoras Uzi. Em 1979, técnicos da Tadiran Israel Eletronics instalaram um centro de computação na capital do país, que se integrou ao Centro Regional de Telecomunicações e começou a funcionar em 1980. Em 1981, foi aberta a Escola de Transmissões e Eletrônica do Exército, “construída e financiada por Israel e dotada de pessoal israelense, para treinar militares em tecnologia de contrainsurgência”.

Nesta toada, em 1992, havia pelo menos trezentos peritos em inteligência israelense no país centro-americano, entre “especialistas em segurança e comunicações e pessoal de treinamento militar”. (The New York Times, 17.4.1982).

O resultado da parceria EUA-Israel na Guatemala não poderia ser outro que não o “terror em escala industrial”. “No curso de duas décadas, até o término da guerra em 1996, o Estado havia matado duzentas mil pessoas, feito desaparecer com 40 mil e torturado não se sabe quantos milhares mais”, aponta Greg Grandin.


Na prática, mais do que em laboratório, a Guatemala foi convertida – como enfatiza o autor - em “campo de extermínio da Guerra Fria”.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Foster Dulles, a mídia e a invasão da Guatemala para a United Fruit



Uma reflexão sobre a guerra de extermínio movida pelos EUA, sua mídia e demais eunucos contra o governo anti-imperialista de Jacobo Arbenz

Leonardo Wexell Severo


“A experiência da Guatemala constitui um verdadeiro arsenal de exemplos de luta anti-imperialista para os nacionalistas de todo o mundo”
Osny Duarte Pereira

Um dos principais acionistas da United Fruit, John Foster Dulles era também – ou por isso mesmo - o secretário de Estado do governo norte-americano no início dos anos 50 quando o presidente da Guatemala, Jacobo Árbenz, decidiu via reforma agrária levar a justiça ao campo e à cidade.

O pequeno país centro-americano foi atacado para defender o interesse do secretário de Estado, que acusava o berço da civilização maia de ser uma “ameaça à paz e à segurança do Hemisfério. Da mesma forma que na guerra do Iraque foram injetados montanhas de bilhões de dólares na empresa do então vice-presidente dos EUA, Dick Cheney, o principal beneficiado pela invasão. Nas duas sangrentas agressões à soberania nacional e aos direitos de todo um povo, os meios de comunicação atuaram como correia de transmissão política e ideológica do imperialismo. O livro de Plínio de Abreu Ramos, “Foster Dulles e a invasão da Guatemala” (Editora Fulgor, 1958) fala sobre a primeira intervenção ianque no continente após a guerra fria.

No prefácio, o professor e jurista Osny Duarte Pereira dá o seu testemunho sobre o que moveu a ira da United Fruit e sua “guerra de extermínio contra um governo”. “Lembro-me nitidamente e jamais me sairá da memória a comoção que me causou, uma fila de lavradores nos guichês da Repartição da Reforma Agrária, recebendo as escrituras de seus terrenos. Homens do campo, condenados perpetuamente à condição de peões, subitamente levados à condição de proprietários das terras, nas quais eram trabalhadores assalariados. Era necessário assistir à cena das fisionomias daquela gente humilde, segurando os documentos com as duas mãos, olhos arregalados, um sorriso largo e, em seguida, abraçaram-se efusivos, despedindo-se da odiosa situação de antigos servos da gleba que eram antes. Parecia uma cena de distribuição de diplomas em festa de formatura, embora se realizasse, como um ato de rotina da repartição governamental, em hora normal de expediente normal, sem discursos, nem aglomerações”. 

Como também recorda o chefe da Casa Civil do presidente Getúlio Vargas, Lourival Fontes, logo na abertura do mesmo livro, “A história da América a partir dos tempos coloniais até os dias mais recentes da sua vida independente não se dissocia em nenhum momento do sistema econômico-internacional e das suas práticas de exploração. A transição do período colonial para o autonomismo marcou a passagem das maldições do monopólio para as penalidades das concessões, dos privilégios e do penhor estrangeiros”. Quando pensamos nas concessões de portos, aeroportos e rodovias, e muito mais grave, no leilão do campo de Libra, no pré-sal, temos a exata dimensão do alerta.

NACIONALIZAÇÃO DE TERRAS

O decreto de 7 de junho de 1953, que marcou o começo da reforma agrária na Guatemala, interrompida um ano depois pela invasão do país, previa a expropriação de menos de 10% das áreas - entre cultivadas e incultas - de propriedade da United Fruit. Poucas semanas depois, em 26 de junho, a República da Guatemala, por intermédio de seu embaixador em Washington, Guilhermo Garrido Torrielo, comunicou ao Departamento de Estado a nacionalização de 233.973 acres de terra de propriedade da Frutera.

O momento era de extrema tensão, lembra o então diretor do Diário de Notícias do Rio de Janeiro, João Portela Ribeiro Dantas, “com a América Central totalmente abalada pelos interesses da companhia norte-americana United Fruit, empresa a que pertencem suas rodovias, suas ferrovias, seus portos e seus navios”. Na verdade, o reinado estabelecido pelo cartel nos países do Caribe “antecede à investida dos trustes petrolíferos ingleses e americanos nas regiões produtoras da Venezuela e do México”.

Dando continuidade às transformações iniciadas pelo presidente Juan José Arévalo (1945-1950), Árbenz vê a necessidade da ruptura com a lógica semicolonial. “Três companhias estrangeiras – United Fruit Company, International Railway of Central America e a Companhia Agrícola de Guatemala – dominavam 75% da superfície agrícola do país e o total de suas linhas de comunicação terrestre e navegação marítima. 80% de sua população camponesa era empregada nas plantações de bananas exploradas pela Frutera. A Guatemala exportava para os Estados Unidos 76% de sua produção e importava, daquele país, 64% dos produtos consumidos no seu mercado interno”. O mesmo torniquete que o Tratado de Livre Comércio (TLC) EUA-Guatemala, assinado em anos recentes, visa perpetuar.
Baseado na Lei de Reforma Agrária e “de acordo com a resolução da ONU que reconhece a todas as nações o direito de nacionalizar seus recursos naturais”, o presidente guatemalteco anunciou a indenização da Frutera sob forma de pagamento em títulos, num prazo de 25 anos a partir da data da expropriação, “ao valor que a companhia havia declarado para fins de tributação”. 

SONEGAÇÃO MONUMENTAL

“A United Fruit pagava ao governo da Guatemala 0,15 cêntimos de dólar por cacho de banana exportado, sem possibilidade de fiscalização aduaneira dessa operação, uma vez que o transporte para a zona de embarque e o carregamento do produto eram efetuados em ferrovias da companhia, embarcados em instalações portuárias controladas pela companhia e transportados para o exterior em navios da própria companhia. Dentro desse privilégio invulnerável de açambarcamento, a adulteração dos dados anuais da colheita da banana, fornecidos ao governo para efeito do imposto taxado por unidade-cacho, subia a mais de 120% sobre o total da produção anual. O Fundo Monetário Internacional documentou em seu relatório correspondente ao ano de 1946 que a declaração do montante da exportação da Frutera comunicada ao governo da Guatemala, naquele período, fora de oito milhões de dólares, quando a exportação avançava à cifra dos dezenove milhões”, apontou Plínio de Abreu Ramos. No ano seguinte, ainda de conformidade com estudos do FMI, “a empresa confessou uma exportação de onze milhões e meio, havendo exportado, de fato, trinta milhões oitocentos mil dólares”. Para ter uma ideia da sonegação, vale lembrar que naquele tempo uma residência na capital guatemalteca custava três mil dólares.

“As primeiras aquisições de propriedades agrárias alcançadas pela United Fruit na Guatemala remontam os tempos da ditadura de Cabrera, no período de 1901 a 1904, ampliadas mais tarde através de contratos assinados durante o efêmero governo de Orellana nos anos de 1923 e 1924. Em 1930, dominado o país pelo caudilho Lázaro Chacón, a companhia estende suas concessões sobre o litoral atlântico, criando em suas ferrovias uma tabela de frete sobre os transportes de produtos nacionais, cuja exportação se processava através desses portos localizados na orla do Pacífico. O resultado dessa ofensiva em direção à costa oriental do país foi, não só a expulsão de proprietários e camponeses das terras que cultivavam na região, mas de um modo especial veio onerar a produção nacional reduzida em face do monopólio, pela Frutera, da rede rodoviária do país. Alguns municípios da zona atlântica para resguardar os interesses dos proprietários nacionais lesados pela companhia, tentaram recurso à justiça, mas o ditador Ubico, apoiado no Exército subornado pelo truste, confirmou a posse da Frutera sobre as terras contestadas”.

“VENCER O VERMELHISMO”

Para garantir o êxito da ação, era necessário invisibilizar os inúmeros avanços obtidos pelos governos nacionalistas de Arévalo e Arbenz, que herdaram o caos do ditador Jorge Ubico (1931-1944), vassalo dos EUA. “As novas rodovias e ferrovias, as centrais elétricas, a reforma agrária, as escolas abertas por toda a parte, ofereciam um espetáculo naquela América Central que dera a sensação, confrontando com os países vizinhos, de estar fora do continente”, relata Osny Duarte Pereira.

Neste momento é que entraram em cena para “vencer as forças do vermelhismo” as agências internacionais de notícias, particularmente a United Press. A empreitada desinformativa visava também cimentar o envolvimento dos “três reis caribenhos contra a Guatemala infiel, altiva e soberana”: “Don Tacho Somoza, da Nicarágua; Don Rafael Trujilo, de São Domingos e Don Perez Jimenez, da Venezuela, cumprindo o pregão da guerra santa exarado”.

Em comunicado oficial à imprensa mundial, o presidente Jacobo Árbenz exibiu mais de duzentas cópias de documentos apreendidos pelas autoridades guatemaltecas implicando Somoza, Trujillo e Jimenez na ação golpista comandada pelo coronel Castillo Armas, mercenário a serviço da CIA, exilado em Honduras. Segundo o comunicado, os conspiradores “estavam adquirindo aviões e bombas Napalm através da firma nicaraguense A.Somoza & CIA, em que Don Tacho e seu filho Somoza Debayle, atual ditador, eram sócios no comércio do contrabando de armas de guerra desembarcados clandestinamente nas costas do Atlântico para municiar as hordas mercenárias”. O governo alertou que numerosos bandos de ‘sabotadores, assassinos e soldados’ estavam sendo adestrados na ilha nicaraguense de Momotombito e na província de Tamarindo, esta última “feudo rural” da família Somoza.

A denúncia do presidente Árbenz ainda descrevia como foi planejado o desembarque nas costas do Pacífico “com tropas trazidas de portos nicaraguenses em barcaças acondicionadas”, o “apoio aéreo mediante bombardeio das povoações e aterragem em aeroportos particulares do Pacífico”, os “ataques simultâneos pela fronteira de Honduras”, e toda a sequência de ações dos mercenários

“Os despachos telegráficos da United Press e dos porta-vozes do Departamento de Estado, publicados nos jornais de 19 de junho anunciando a invasão da Guatemala, mostram que os chefes militares invasores não tiveram o cuidado de retificar o plano de ataque denunciado pelo governo de Jacobo Árbenz. O governo revidou esse agravo, providenciando a expulsão do país dos jornalistas americanos Sidney Gruson e Marshall Bannel, correspondentes respectivamente do ‘New York Times’ e da ‘National Broadcasting Company’, como sendo agentes mais ativos na campanha de desprestígio que, em forma maliciosa e crescente, desenvolvem certos órgãos de informação contra a Guatemala”, relata o livro.

“Irritada” com a expulsão dos dois espiões, a Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Representantes “sugeriu” ao Departamento de Estado sanções econômicas à nação maia, suspendendo as compras do café daquele país. Na imprensa brasileira, o “entusiasmo” previsto pela United Press foi recebido com indescritível euforia nas manchetes do “O Globo” e dos “Diários Associados”. A “Tribuna da Imprensa” do Rio de Janeiro foi além na submissão: “Agora, sirvam-se chamar-nos de vendido ao estrangeiro. Isso não nos assusta nem nos desvia do caminho que temos a percorrer”.

NOTÍCIA DEFORMADA E CALUNIOSA

 “O maior perigo” – advertiu o embaixador da Guatemala em Washington, Guilhermo Garrido Toriello – “é que estão procurando apoio coletivo da América para violar impunemente o princípio de não intervenção, porém nos recusamos a crer que estão querendo voltar às velhas práticas de antanho, em que os velhos monopólios influíam predominantemente na política de alguns países, por meio do temor ao grande porrete e da vergonhosa diplomacia do dólar, em que era coisa natural que a infantaria da Marinha dos Estados Unidos desembarcava em portos latino-americanos para dominar as alfândegas, a fim de ‘proteger interesses’ ou para ‘corrigir atividades políticas’ que não agradavam àqueles interesses”.  “Tudo isso se está fazendo na Guatemala, porém não o sabem os povos da América. A notícia que lhes chega pelas agências noticiosas, que servem à causa dos monopólios, é uma notícia deformada e sempre caluniosa”, advertiu o chanceler, frisando que tal ação midiática se prestava à “subserviência mental”.

Para justificar a remessa de armamento norte-americano para Honduras, onde seriam entregues aos mercenários de Castillo Armas, os “eunucos de maior pedigree” passaram a propagar a versão de que o governo da Guatemala vinha adquirindo armas de guerra na União Soviética e na Polônia. Dando continuidade ao script, já na semana seguinte, a United Press divulgava um despacho, segundo o qual “as autoridades de Honduras descobriram vestígios de participação de elementos do governo guatemalteco na greve que estourara na véspera nos plantios de bananas da Frutera ao norte daquele país”. E na mesma toada utilizada hoje contra o presidente Assad e o povo da Síria, provocavam uma verdadeira avalanche desinformativa, buscando criar o caldo de cultura necessário à intervenção, com aviões norte-americanos lançando “armamento cunhado com a foice e o martelo” sobre a zona rural confiscada. O governo guatemalteco denunciou a armação. Mas ninguém repercutiu. 

“ESPADAS DE MADEIRA” 

Esclarecendo o caso da compra das “armas pesadas de guerra” – que infelizmente para a manutenção da soberania e da democracia também não era verdade - o governo suíço informou que “a carga enviada à Guatemala, orçada em 40 mil dólares, equivalentes a 134 mil francos suíços, constava apenas de 16 caixas de cartuchos para treinamento de defesa anti-aérea”. E assinalava a “impropriedade” de qualificar como “arma”, a “cartuchos que não podem ser mais úteis em guerra do que espadas de madeira”. Apesar deste esclarecimento oficial da própria fonte fornecedora, “a mentira nutrida pela corrupção do truste insistia, resoluta e audaciosa, em atribuir a origem da compra dos cartuchos à Polônia e à União Soviética”. Jogando verde, a mídia venal prospectava para os invasores as vulnerabilidades da resistência guatemalteca.

No Brasil, se prestando à genuflexão ianque, a Tribuna da Imprensa publicou em 24 de junho de 1954: “O navio sueco ‘Alfhelm’, depois de viagem misteriosa cheia de vaivens, desembarcou clandestinamente, mas sob as vistas diretas do governo, duas mil toneladas, em 25 mil caixas de armamento tcheco controlado pela Rússia, vindas do porto polonês do Sttettin, no Báltico. Interpelado, o governo guatemalteco declarou que desde 1949 os Estados Unidos, sob alegação de que não tinham confiança no destino que ia ser dado ao armamento, deixaram de vender ou ceder armas à Guatemala. Por isto, disse, recorreu a fontes russas, mas era um único e pequeno carregamento, garantiu Toriello, em nome do governo”.

Intencionalmente, inventaram dados, deturparam a fonte e a quantidade das armas encomendadas, “além de responsabilizarem Toriello por explicações que ele não deu, não podia dar nem tinha que dar”. As equipes sabotadoras, que agiam com impressionante e inexplicável desembaraço, “eram chefiadas dentro da própria Guatemala por um sacerdote francês expulso do país e acolhido no Rio de Janeiro pelas autoridades brasileiras, onde passou a conceder entrevistas difamatórias contra aquela República nas colunas do O Globo e da Tribuna da Imprensa”. “No terreno da espionagem, o governo não ignorava que nesse ofício criminoso exercitavam-se, abertamente, a imprensa colaboracionista da Frutera, ‘El Imparcial’, ‘El Espectador’, ‘El Mundo Libre’, certas facções do clero filiadas à Acción Social Cristiana”.

Antes de ordenar que suas tropas contra-atacassem o inimigo, que já ocupara uma faixa territorial de 15 quilômetros além da fronteira nicaraguense, o governo Árbenz recorreu ao Conselho de Segurança da ONU, com Toriello informando a presença de forças militares estrangeiras no Departamento de Chiquimula e o bombardeio de suas cidades por “aviões de construção norte-americana P-47”, oriundos de bases instaladas em Nicarágua e Honduras, “uma vez que os mercenários não possuíam nenhum aeródromo ou base militar no país”. O chanceler guatemalteco esclareceu ainda que na noite do dia 20 o navio hondurenho “Siesta de Trujillo” foi apreendido em Puerto Barrios quando descarregava metralhadoras, fuzis e granadas para abastecer os mercenários, “enquanto novos aviões bombardeavam Zacapa, York e Cristina e pontes ferroviárias que ligavam à fronteira de Honduras à capital da Guatemala”.

“PROPAGANDA POLÍTICA”

A United Press ainda aproveitou o fato de ter sido o soviético Viatcheslav Molotov o primeiro chanceler a responder à exortação de Toriello. No dia 27, em artigo publicado no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, Rafael Correa de Oliveira denuncia os propósitos da desinformação veiculada pelas agências de notícias, restabelecendo a versão exata das notas diplomáticas trocadas entre chancheleres da Guatemala e da União Soviética. Com esse espírito, esclarece o articulista, “tenha o leitor muito cuidado com o noticiário das agências telegráficas”. “Anteontem, por exemplo, tentaram impingir aos jornais um comunicado sobre as viagens de cruzadores russos que viriam trazer uma especializada missão militar para defender a Guatemala. Era mentira. Ontem publicaram um apelo da Guatemala a Molotov. Também mentiram. Trata-se do telegrama-circular enviado a todos os membros do Conselho de Segurança – o Brasil e a Rússia incluídos. O noticiário tendencioso individualizou o apelo para assim melhor cumprir as instruções da propaganda política da guerra da banana”.

No setor de Zacapa, denunciava o governo guatemalteco, “era considerável o número de civis mortos em consequência do metralhamento da população por aviões P-47, marca Thunderbolt, de fabricação norte-americana, que só poderiam proceder de Manágua ou de Tegucigalpa, cujos aeroportos, de Las Mercedes e Toncintis, respectivamente, eram os únicos na América Central que possuíam pistas de pouso para aparelhos daquele tipo”. 

No dia 28 de junho, “com a Guatemala sangrando nos campos de batalha e traída pela covardia remunerada da diplomacia norte-americana”, Arbenz renuncia. As ações da Frutera sobem dois pontos na Bolsa de Valores de Nova York.

“A corrupção imperialista na Guatemala, como não podia deixar de acontecer, causou efeitos imediatos de fome, terrorismo e ditadura logo nos primeiros meses da subida de Castillo Armas ao poder”. Apenas nos campos de concentração de Poptum, no Departamento de Peten, havia cerca de 6.500 prisioneiros. Os assassinatos políticos respondiam à “orientação” por uma “justiça severa, rápida e eficaz”. “Uma das primeiras vítimas dos assassinatos judiciários ordenados pela ditadura, depois dos massacres de Vila Nueva, Amatitlan e Antigua, em que foram metralhados quase todos os líderes sindicais dos trabalhadores da Frutera, foi o deputado Alarico Bennet, executado a mando de Rozendo Perez, facínora e bandoleiro fugitivo da justiça guatemalteca, que alugara seus serviços às quadrilhas mercenárias de Castillo Armas”.

CORRUPÇÃO NORTE-AMERICANA

O “nível de decomposição generalizada que a corrupção norte-americana provocou na atmosfera de venalidade que rodeia o país” logo ficou evidenciado. Tamanhas foram a “indecência e a infâmia” das “cláusulas” enviadas pelo ditador à Assembleia Constituinte, “eleita” depois da invasão sem a participação dos partidos aliados de Árbenz, postos na ilegalidade, que o deputado Clemente Rojas - diretor do jornal bananeiro “La Hora”, que participou de toda a violenta campanha movida contra o governo nacionalista - chegou a declarar que se retirava “enojado desta assembleia” e “deste Congresso corrompido”. “Igual desprezo pela ditadura mercenária manifestou outro antigo prócer bananeiro, senhor Alfonso Carrillo, quando expressou em seu discurso: “Sinto-me como se formássemos parte dos Estados Unidos. A tradução macarrônica desses contratos é, obviamente, o resultado da tradução do inglês para o castelhano”.

“Como nos tempos antigos aparecem, de novo, na Guatemala, os descalços e andrajosos que enchem especialmente as ruas da capital”, descreve Carleton Beals, no “The Progressive”. E prossegue: “grande percentagem de desempregados são trabalhadores despedidos das obras e dos projetos de casa popular, assim como também camponeses despojados de suas terras. Cerca de um milhão de acres lhes haviam sido entregues pelo governo de Arbenz, parcelas de terras devolutas que os camponeses com seus próprios recursos haviam preparado para a semeadura. O desemprego geral e a destruição dos Sindicatos acarretou uma baixa de salários de aproximadamente um dólar - que ganhavam na época democrática - até o salário de quinze centavos, que era o nível corrente sob a ditadura de Ubico. Em alguns lugares os salários do campo foram rebaixados em 50% ou mais. Ao mesmo tempo, a inflação e a escassez de alimentos elevou até o céu o custo de vida”.

Em meio a este cenário de devastação e degeneração, Ramon Blanco, sócio do jornal golpista “El Imparcial”, colunista da “Tribuna da Imprensa”, escreve em 24 de setembro de 1954 que “há muita gente que tem estranhado muitíssimo que não se organizasse, até agora, uma homenagem pública ao embaixador dos Estados Unidos da América, senhor John Peurifoy, como demonstração de agradecimento e carinho por sua magnífica atuação e colaboração para vencer a administração que acaba de ser derrotada”.

A “deificação lisonjeira” expressa pelo escriba pró-imperialista, conclui Plínio de Abreu Ramos, “vai ao cúmulo de louvor ao espião alegre e libertino com a mesma solicitude do serviçal Lebel que, ao beijar os calções rendados de Luiz XV, exclamava enternecido: “Senhor, podeis contar com a minha canalhice!”