Em meio à
violenta e sangrenta repressão antissindical, governo de Otto Pérez Molina
entrega ao capital estrangeiro o futuro do principal porto da Guatemala
Leonardo Wexell
Severo – ComunicaSul
Fotos: Joka Madruga - ComunicaSul
Em Puerto
Quetzal, no litoral Pacífico, tivemos contato com a luta – árdua e sangrenta - do
movimento sindical da Guatemala contra o governo do presidente Otto Pérez
Molina, reconhecido como “major Tito Árias”, ex-parceiro de armas do genocida
Ríos Montt nos anos 80.
Localizada a 98
quilômetros da capital, a principal estrutura portuária guatemalteca envolve
cerca de cinco mil trabalhadores e movimenta mais de metade das mercadorias que
entram e saem do país maia. Devido à sua infraestrutura, localização e
proximidade, tem papel relevante para a região, principalmente em relação às
cargas em direção a Belize, El Salvador, Honduras e Nicarágua. A relevância estratégica do porto é facilmente explicada:
os outros dois ficam no Atlântico, o de Cobigua, pertencente à multinacional
bananeira estadunidense Chiquita Brands, e o de Santo Tomás de Castilla, estatal,
mas que é somente pesqueiro.
O movimento
comercial crescente na última década, entre 6% e 10% ao ano, tem movido as
multinacionais a realizarem influentes e bem remuneradas “gestões” junto às
autoridades pela privatização do Porto de Quetzal. Para potencializar os
lucros, as empresas acionaram os aprendizes de Luciano Coutinho. O objetivo é que
a desnacionalização seja feita com o maior aproveitamento de recursos públicos
possível, travestindo o neoliberalismo da privatização em “usufruto” ou
“concessão”. Retirados da cartilha do FMI, os apelos em prol da “modernização”
e da “eficiência” de um “porto lento” em que “as filas prejudicam o país” são
repetidos à exaustão, utilizando-se da mídia para identificar a defesa do
patrimônio público nacional como “corporativismo” e a alienação da soberania
como “progresso e desenvolvimento”.
![]() |
Santiago, Lázaro e Francisco: lideranças portuárias denunciam as arbitrariedades |
Com a bússola
virada para o Norte, seja Estados Unidos ou Europa, o governo tem respondido
aos sucessivos protestos da população com bastante agilidade. A criminalização
dos movimentos sociais mobiliza tropas do exército para proteger os interesses
do capital estrangeiro nas bananeiras e mineradoras. O mesmo acontece agora na enorme
parte do porto que acaba de ser repassada em “usufruto” por 25 anos. Para prorrogar
este prazo por outro período igual, a empresa necessitará tão somente enviar uma
“solicitação” com três meses de antecedência.
SABOTANDO A CONCORRÊNCIA
Tamanha
identidade com a nação (dos outros) fez com o governo disponibilizasse 348.341
metros quadrados de porto, com sua saída ao mar, à Empresa Terminal de
Contêineres Quetzal (TCQ), companhia inscrita na Guatemala, mas cuja matriz –
driblando a lei local - está na Espanha. Vale lembrar que tal “consórcio”,
liderado pela subsidiária da Terminal de Contêineres de Barcelona (TCB), foi
constituído em abril deste ano com ridículos cinco mil quetzales – o
equivalente a US$ 680,00. Atualmente o porto gera anualmente ao Estado cerca de
100 milhões de quetzales, o que representa 20% dos ingressos brutos do Estado,
aponta a Superintendência de Administração Tributária (SAT).
A fim de colocar
uma pá de cal na concorrência, o lado privado sai na frente para converter-se
em porto “hub”, ao qual chegam navios de longo percurso que descarregam suas
mercadorias para serem redistribuídas em trajetos mais curtos. Com 15 metros de
calado contra 11,5 metros do porto público, o privado ganhará em profundidade
os metros que faltarão ao “concorrente”, com a anuência e sabotagem da atual
administração para receber as maiores e mais lucrativas embarcações, denunciam
os sindicatos.
Para que tamanho
atropelo fosse consumado, muito sangue correu, gente morreu, foi perseguida e
demitida. O assassinato de Júlio Peña, dirigente dos trabalhadores da estiva,
em janeiro deste ano, e a onda de demissões de lideranças que se seguiu aos
tiros que o abateram são expressões do fascismo ainda vigente. Da mesma forma
que as ameaças aos que persistiram em estruturar uma entidade sindical de
representação desta mão de obra nas empresas privadas integram a extensa jornada
de resistência.
![]() |
Foto divulgada pelos companheiros guatemaltecos |
100 BALAS PARA PEDRO ZAMORA
No dia 15 de
janeiro de 2007, após inúmeras ameaças de morte, Pedro Zamora, então secretário
geral do Sindicato de Trabalhadores da Empresa Portuária Quetzal (Stepq), teve
seu carro alvejado por mais de cem disparos quando retornava para casa com os
dois filhos. “Ele se jogou sobre as crianças para protegê-las, recebendo 17 balaços.
O filho menor, de apenas três anos, foi baleado mas sobreviveu. Para ter
certeza da conclusão do ‘serviço’, um dos matadores se aproximou do veículo e
disparou no rosto de Pedro”, conta Arturo Granados, do Sindicato Unido dos
Trabalhadores (Sutraporquet).
Na avaliação de
Granados o alvo era claro: silenciar uma voz de combate à privatização do
porto, que ecoava denunciando as demissões arbitrárias, “mobilizava contra os
atropelos na negociação do Pacto Coletivo de Trabalho e toda e qualquer
violação aos direitos dos trabalhadores”.
A atrocidade
ganhou repercussão nacional e internacional, fazendo com que os entreguistas de
turno recuassem do seu objetivo privatizante. No dia 12 de fevereiro daquele
ano os nove trabalhadores do Stepq, demitidos ilegalmente pela empresa
portuária, foram recontratados e reintegrados com os mesmos cargos e salários.
De lá para cá, mais do que um símbolo de eficiência, Puerto Quetzal é sinônimo
de resistência e unidade da classe trabalhadora não só da Guatemala, como de
toda a América Central. A experiência reuniu as três entidades sindicais da
empresa, que passaram a atuar conjuntamente, superando eventuais divergências.
GOVERNO MANCHADO DE SANGUE
![]() |
Zamora foi assassinado com 17 balas |
A unidade
sindical também é um dos motores do Movimento Sindical e Popular Autônomo da Guatemala, que reúne a Confederação de Unidade Sindical (CUSG), a
Central Geral de Trabalhadores (CGTG), a União Sindical de Trabalhadores (Unsitragua)
e o Movimento de Trabalhadores Camponeses e Camponesas de San Marcos (MTC), que
têm comandado as mobilizações contra o entreguismo do governo Pérez Molina.
“Não são só os
sindicalistas as vítimas do uso e abuso da repressão, mas o conjunto dos
movimentos sociais, os camponeses, os estudantes, todos os que se confrontam
com o interesse da oligarquia que age em sintonia com o governo dos Estados
Unidos”, alertou Júlio Coj, da direção da Unsitragua. A submissão aos “interesses
econômicos e à geopolítica estadunidense” vem de longe, tendo se explicitado
com a atuação ianque na deposição do governo nacionalista de Jacobo Árbenz,
deposto por um golpe orquestrado pela CIA em 1954. Posteriormente, ganhou
magnitude – e apoio israelense - na longa noite de terror entre 1960
e 1996, com pelo menos 250 mil mortos e desaparecidos, conforme levantamento
da ONU.
Lázaro Reyes, atual
secretário geral do Stepq, lembra que Pérez Molina tem sua trajetória e seu
governo “manchados pela violência”. “Em Totonicapán em 4 de outubro do ano
passado uma comunidade que protestava contra o aumento da energia elétrica teve
oito manifestantes assassinados e dezenas de feridos pelo Exército”, recordou
Lázaro, frisando que “não há conflito que esse governo resolva na mesa de
negociação”. Pelo contrário, disse, “Molina nunca busca o diálogo, quer sempre resolver
qualquer assunto mandando soldados. Ele tem o exército metido em sua cabeça”.
“No tempo de
Ríos Montt, sentenciado por genocídio, o exército se posicionava para
exterminar a oposição, para que as pessoas trabalhassem em estado de
escravidão. Pérez Molina era militar na época e adotava métodos similares, sendo
conhecido pelo seu pseudônimo de comandante Tito Arias”, recordou Lázaro Reyes.
Diante dos recentes protestos contra a privatização, apontou o sindicalista,
além da polícia, o governo enviou tropas especiais, forças da Guarda Naval e dos
paraquedistas. “É um governo que para atacar a soberania e blindar o capital se
utiliza da força, ignorando qualquer ordenamento jurídico”, acrescentou Mynor
Siajes, secretário de Organização do Stepq.
TESTEMUNHA DA MATANÇA
Entre as inúmeras testemunhas de acusação que se
pronunciaram no julgamento de Ríos Montt pela organização de pelo menos 16
matanças coletivas de 1.771 indígenas, ganha relevo o depoimento de Hugo Bernal.
Mecânico do Corpo de Engenheiros do Exército em uma unidade do noroeste do departamento
de Quiché, entre 1982 e 1983, Bernal assegurou que “sob ordens do major Tito
Arias, hoje conhecido como Otto Pérez Molina, os soldados coordenavam a queima
e o saque das pessoas". Servindo no quartel militar El Pino, no povoado de
Nebaj – município que integra o Triângulo Ixil – ele relatou que “houve
execuções na companhia militar”, sendo Molina um dos mandantes do massacre
desta etnia. O ex-coladorador do Exército afirmou ter presenciado grande
quantidade de indígenas serem levados por soldados. Quando retornavam, atestou,
“vinham feridos, com a língua cortada, as unhas arrancadas e eram executados
pelos militares". “As pessoas eram transferidas, mulheres e crianças.
Quando as execuções aconteciam em El Pino, os oficiais encarregados eram que os
matavam e sepultavam clandestinamente", informou.
De acordo com o
dirigente do Sindicato de Trabalhadores Organizados da Portuária Quetzal,
Francisco Javier Reyes Navarrete, frente a tantos e tão reiterados abusos, a
aliança entre as três entidades sindicais que atuam no porto “é essencial para
enfrentar o sistema neoliberal que atenta contra o interesse nacional”. Ele
lembra que o processo de dilapidação do patrimônio público no local tem seu
antecedente histórico nas concessões de operações de grua e na transferência
dos trabalhos da estiva. Assim, embora trabalhem no local milhares de pessoas,
apenas 745 são fixas, “ficando as demais em situação extremamente vulnerável,
para não dizer precária”. “Não podemos tapar o sol com um dedo: concessão é
privatização. Nós estamos defendendo o patrimônio que é de todos, o futuro dos
nossos filhos e netos, o futuro do nosso país”, assinalou.
Francisco lembra
que o governo tem respondido às inúmeras denúncias interpostas pelo movimento
sindical sobre a agressão aos direitos humanos com ameaças, “nos chamando de
terroristas e de narcotraficantes, fazendo de tudo para intimidar”. “Júlio Peña
foi assassinado e vários dos companheiros do seu Sindicato foram demitidos e
proibidos de ingressar no porto. Para que recebessem o que era devido tiveram
que desistir das denúncias que apresentaram no Ministério do Trabalho. A
impunidade é o que alimenta o crime na Guatemala. Infelizmente, há muito tempo”,
frisou.