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terça-feira, 30 de julho de 2013

Porto Quetzal: assassinato sob encomenda para privatização




Em meio à violenta e sangrenta repressão antissindical, governo de Otto Pérez Molina entrega ao capital estrangeiro o futuro do principal porto da Guatemala

Leonardo Wexell Severo – ComunicaSul
Fotos: Joka Madruga - ComunicaSul


Em Puerto Quetzal, no litoral Pacífico, tivemos contato com a luta – árdua e sangrenta - do movimento sindical da Guatemala contra o governo do presidente Otto Pérez Molina, reconhecido como “major Tito Árias”, ex-parceiro de armas do genocida Ríos Montt nos anos 80.
Localizada a 98 quilômetros da capital, a principal estrutura portuária guatemalteca envolve cerca de cinco mil trabalhadores e movimenta mais de metade das mercadorias que entram e saem do país maia. Devido à sua infraestrutura, localização e proximidade, tem papel relevante para a região, principalmente em relação às cargas em direção a Belize, El Salvador, Honduras e Nicarágua. A relevância  estratégica do porto é facilmente explicada: os outros dois ficam no Atlântico, o de Cobigua, pertencente à multinacional bananeira estadunidense Chiquita Brands, e o de Santo Tomás de Castilla, estatal, mas que é somente pesqueiro.
O movimento comercial crescente na última década, entre 6% e 10% ao ano, tem movido as multinacionais a realizarem influentes e bem remuneradas “gestões” junto às autoridades pela privatização do Porto de Quetzal. Para potencializar os lucros, as empresas acionaram os aprendizes de Luciano Coutinho. O objetivo é que a desnacionalização seja feita com o maior aproveitamento de recursos públicos possível, travestindo o neoliberalismo da privatização em “usufruto” ou “concessão”. Retirados da cartilha do FMI, os apelos em prol da “modernização” e da “eficiência” de um “porto lento” em que “as filas prejudicam o país” são repetidos à exaustão, utilizando-se da mídia para identificar a defesa do patrimônio público nacional como “corporativismo” e a alienação da soberania como “progresso e desenvolvimento”.
Santiago, Lázaro e Francisco: lideranças portuárias denunciam as arbitrariedades
Com a bússola virada para o Norte, seja Estados Unidos ou Europa, o governo tem respondido aos sucessivos protestos da população com bastante agilidade. A criminalização dos movimentos sociais mobiliza tropas do exército para proteger os interesses do capital estrangeiro nas bananeiras e mineradoras. O mesmo acontece agora na enorme parte do porto que acaba de ser repassada em “usufruto” por 25 anos. Para prorrogar este prazo por outro período igual, a empresa necessitará tão somente enviar uma “solicitação” com três meses de antecedência.

SABOTANDO A CONCORRÊNCIA

Tamanha identidade com a nação (dos outros) fez com o governo disponibilizasse 348.341 metros quadrados de porto, com sua saída ao mar, à Empresa Terminal de Contêineres Quetzal (TCQ), companhia inscrita na Guatemala, mas cuja matriz – driblando a lei local - está na Espanha. Vale lembrar que tal “consórcio”, liderado pela subsidiária da Terminal de Contêineres de Barcelona (TCB), foi constituído em abril deste ano com ridículos cinco mil quetzales – o equivalente a US$ 680,00. Atualmente o porto gera anualmente ao Estado cerca de 100 milhões de quetzales, o que representa 20% dos ingressos brutos do Estado, aponta a Superintendência de Administração Tributária (SAT).
A fim de colocar uma pá de cal na concorrência, o lado privado sai na frente para converter-se em porto “hub”, ao qual chegam navios de longo percurso que descarregam suas mercadorias para serem redistribuídas em trajetos mais curtos. Com 15 metros de calado contra 11,5 metros do porto público, o privado ganhará em profundidade os metros que faltarão ao “concorrente”, com a anuência e sabotagem da atual administração para receber as maiores e mais lucrativas embarcações, denunciam os sindicatos.
Para que tamanho atropelo fosse consumado, muito sangue correu, gente morreu, foi perseguida e demitida. O assassinato de Júlio Peña, dirigente dos trabalhadores da estiva, em janeiro deste ano, e a onda de demissões de lideranças que se seguiu aos tiros que o abateram são expressões do fascismo ainda vigente. Da mesma forma que as ameaças aos que persistiram em estruturar uma entidade sindical de representação desta mão de obra nas empresas privadas integram a extensa jornada de resistência.

Foto divulgada pelos companheiros guatemaltecos
100 BALAS PARA PEDRO ZAMORA

No dia 15 de janeiro de 2007, após inúmeras ameaças de morte, Pedro Zamora, então secretário geral do Sindicato de Trabalhadores da Empresa Portuária Quetzal (Stepq), teve seu carro alvejado por mais de cem disparos quando retornava para casa com os dois filhos. “Ele se jogou sobre as crianças para protegê-las, recebendo 17 balaços. O filho menor, de apenas três anos, foi baleado mas sobreviveu. Para ter certeza da conclusão do ‘serviço’, um dos matadores se aproximou do veículo e disparou no rosto de Pedro”, conta Arturo Granados, do Sindicato Unido dos Trabalhadores (Sutraporquet).
Na avaliação de Granados o alvo era claro: silenciar uma voz de combate à privatização do porto, que ecoava denunciando as demissões arbitrárias, “mobilizava contra os atropelos na negociação do Pacto Coletivo de Trabalho e toda e qualquer violação aos direitos dos trabalhadores”.
A atrocidade ganhou repercussão nacional e internacional, fazendo com que os entreguistas de turno recuassem do seu objetivo privatizante. No dia 12 de fevereiro daquele ano os nove trabalhadores do Stepq, demitidos ilegalmente pela empresa portuária, foram recontratados e reintegrados com os mesmos cargos e salários. De lá para cá, mais do que um símbolo de eficiência, Puerto Quetzal é sinônimo de resistência e unidade da classe trabalhadora não só da Guatemala, como de toda a América Central. A experiência reuniu as três entidades sindicais da empresa, que passaram a atuar conjuntamente, superando eventuais divergências.

GOVERNO MANCHADO DE SANGUE

Zamora foi assassinado com 17 balas
A unidade sindical também é um dos motores do Movimento Sindical e Popular Autônomo da Guatemala, que reúne a Confederação de Unidade Sindical (CUSG), a Central Geral de Trabalhadores (CGTG), a União Sindical de Trabalhadores (Unsitragua) e o Movimento de Trabalhadores Camponeses e Camponesas de San Marcos (MTC), que têm comandado as mobilizações contra o entreguismo do governo Pérez Molina.
“Não são só os sindicalistas as vítimas do uso e abuso da repressão, mas o conjunto dos movimentos sociais, os camponeses, os estudantes, todos os que se confrontam com o interesse da oligarquia que age em sintonia com o governo dos Estados Unidos”, alertou Júlio Coj, da direção da Unsitragua. A submissão aos “interesses econômicos e à geopolítica estadunidense” vem de longe, tendo se explicitado com a atuação ianque na deposição do governo nacionalista de Jacobo Árbenz, deposto por um golpe orquestrado pela CIA em 1954. Posteriormente, ganhou magnitude – e apoio israelense - na longa noite de terror entre 1960 e 1996, com pelo menos 250 mil mortos e desaparecidos, conforme levantamento da ONU.
Lázaro Reyes, atual secretário geral do Stepq, lembra que Pérez Molina tem sua trajetória e seu governo “manchados pela violência”. “Em Totonicapán em 4 de outubro do ano passado uma comunidade que protestava contra o aumento da energia elétrica teve oito manifestantes assassinados e dezenas de feridos pelo Exército”, recordou Lázaro, frisando que “não há conflito que esse governo resolva na mesa de negociação”. Pelo contrário, disse, “Molina nunca busca o diálogo, quer sempre resolver qualquer assunto mandando soldados. Ele tem o exército metido em sua cabeça”.
“No tempo de Ríos Montt, sentenciado por genocídio, o exército se posicionava para exterminar a oposição, para que as pessoas trabalhassem em estado de escravidão. Pérez Molina era militar na época e adotava métodos similares, sendo conhecido pelo seu pseudônimo de comandante Tito Arias”, recordou Lázaro Reyes. Diante dos recentes protestos contra a privatização, apontou o sindicalista, além da polícia, o governo enviou tropas especiais, forças da Guarda Naval e dos paraquedistas. “É um governo que para atacar a soberania e blindar o capital se utiliza da força, ignorando qualquer ordenamento jurídico”, acrescentou Mynor Siajes, secretário de Organização do Stepq.

TESTEMUNHA DA MATANÇA

Entre as inúmeras testemunhas de acusação que se pronunciaram no julgamento de Ríos Montt pela organização de pelo menos 16 matanças coletivas de 1.771 indígenas, ganha relevo o depoimento de Hugo Bernal. Mecânico do Corpo de Engenheiros do Exército em uma unidade do noroeste do departamento de Quiché, entre 1982 e 1983, Bernal assegurou que “sob ordens do major Tito Arias, hoje conhecido como Otto Pérez Molina, os soldados coordenavam a queima e o saque das pessoas". Servindo no quartel militar El Pino, no povoado de Nebaj – município que integra o Triângulo Ixil – ele relatou que “houve execuções na companhia militar”, sendo Molina um dos mandantes do massacre desta etnia. O ex-coladorador do Exército afirmou ter presenciado grande quantidade de indígenas serem levados por soldados. Quando retornavam, atestou, “vinham feridos, com a língua cortada, as unhas arrancadas e eram executados pelos militares". “As pessoas eram transferidas, mulheres e crianças. Quando as execuções aconteciam em El Pino, os oficiais encarregados eram que os matavam e sepultavam clandestinamente", informou.
De acordo com o dirigente do Sindicato de Trabalhadores Organizados da Portuária Quetzal, Francisco Javier Reyes Navarrete, frente a tantos e tão reiterados abusos, a aliança entre as três entidades sindicais que atuam no porto “é essencial para enfrentar o sistema neoliberal que atenta contra o interesse nacional”. Ele lembra que o processo de dilapidação do patrimônio público no local tem seu antecedente histórico nas concessões de operações de grua e na transferência dos trabalhos da estiva. Assim, embora trabalhem no local milhares de pessoas, apenas 745 são fixas, “ficando as demais em situação extremamente vulnerável, para não dizer precária”. “Não podemos tapar o sol com um dedo: concessão é privatização. Nós estamos defendendo o patrimônio que é de todos, o futuro dos nossos filhos e netos, o futuro do nosso país”, assinalou.
Francisco lembra que o governo tem respondido às inúmeras denúncias interpostas pelo movimento sindical sobre a agressão aos direitos humanos com ameaças, “nos chamando de terroristas e de narcotraficantes, fazendo de tudo para intimidar”. “Júlio Peña foi assassinado e vários dos companheiros do seu Sindicato foram demitidos e proibidos de ingressar no porto. Para que recebessem o que era devido tiveram que desistir das denúncias que apresentaram no Ministério do Trabalho. A impunidade é o que alimenta o crime na Guatemala. Infelizmente, há muito tempo”, frisou.




quarta-feira, 12 de junho de 2013

Uma entre quatro crianças trabalha na Guatemala



Dos 1,24 milhão de trabalhadores menores de 14 anos na América Central, 61,8% são guatemaltecos

A Pesquisa Nacional de Condições de Vida da Guatemala realizada em 2011 aponta que existem no país 850 mil e 937 meninas e meninos trabalhadores entre 7 e 17 anos. Dos mais de um milhão e 239 mil crianças menores de 14 anos que trabalham na América Central, 61,8% são guatemaltecas. Destas, a maioria é indígena, concentrada na faixa etária entre 10 e 14 anos. Esta pequena mão de obra é atualmente responsável por 20% do PIB nacional.

Focamos na Guatemala, lembrando o 12 de junho, Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, por ser este o país da América Latina onde os sindicatos e movimentos sociais têm sido proporcionalmente mais reprimidos, registrando uma média de 15 assassinatos anuais de sindicalistas para uma população inferior a 15 milhões. (A Colômbia ostenta 30 para uma população de 47 milhões).

Os graves e reiterados crimes contra os trabalhadores e suas lideranças fez a taxa de sindicalização despencar a inexpressivos 1,6%. Sem entidades fortes e representativas, direitos são desrespeitados e salários são arrochados. Faltando fiscalização e sobrando impunidade, crianças passam a ser uma alternativa para que as empresas rebaixem ainda mais as já miseráveis condições de trabalho.

A impunidade tem sido regra no país, grande exportador de alimentos por transnacionais, sobretudo estadunidenses, financiadoras e beneficiárias dos sucessivos governos títeres de Washington. Por mais que as agências internacionais de notícias invisibilizem, a realidade salta aos olhos. Os mesmos jornais guatemaltecos desta quarta-feira que mostram como o general reformado e ex-presidente José Efraín Ríos Montt, condenado a 80 anos de prisão por genocídio - deixou livremente na madrugada de terça-feira o hospital onde estava, após um tribunal ter anulado a sua sentença -, descrevem o falecimento de Elvis Dany Morales Pérez, de quatro meses, morto por “desnutrição severa aguda”. Outros dois bebês ficaram hospitalizados por padecerem do mesmo problema. As vítimas dialogam com a obra construída pelo mesmo regime que garante a impunidade ao genocida.

INFÂNCIA COMPROMETIDA

Conforme informações do Projeto Primeiro Aprendiz na América Central, o grau de exploração das crianças trabalhadoras guatemaltecas compromete o seu desenvolvimento físico, mental e moral, interferindo diretamente na escolarização, pois mais da metade delas acaba abandonando os estudos. Muitas delas inclusive são submetidas a “trabalho infantil nas piores formas”, “que é o trabalho perigoso que põe em risco o bem-estar”.

De acordo com a Convenção 187 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), não são abusos quaisquer. Sem nenhum apoio do Estado, boa parte destes menores acaba sendo vítima da escravidão, do tráfico de drogas, da exploração sexual e da pornografia. Além disso, a própria natureza das condições de trabalho expõe a saúde destes menores, que acabam se acidentando, ficando gravemente lesionados ou mutilados, quando não perdem a vida em serviço. 

Mesmo nos jornais conservadores há fartura de exemplos de meninas que trabalham como domésticas em jornadas de mais de 12 horas desde os cinco anos. Meninas cuja única boneca que conhecem não lhes pertence. Pequenos seres, frágeis e débeis, que acabam sem infância, recrutadas para serem “responsáveis” por crianças da sua mesma idade. 

“QUEDAS, QUEBRADURAS, CHOQUES ELÉTRICOS”

“Nas atividades agropecuárias são expostas ao calor, ao frio, à chuva e à radiação solar. Também se veem obrigadas a manejar substâncias tóxicas sem nenhuma proteção, ferramentas, e a trabalhar em longas, extensas e extenuantes jornadas, sendo atacadas por animais em áreas de risco”, denuncia o especialista Alejandro Zepeda. Com base em extensos estudos, Zepeda sustenta que “há milhares de casos de crianças que sofreram de discriminação racial, maus tratos e abusos sexuais”. “Outras estão expostas a riscos maiores, como as que trabalham na construção, sofrendo com as quedas, quebraduras e choques elétricos”, acrescentou.

Apesar do Código Penal guatemalteco apontar como delito o emprego de menores de idade em atividades laborais lesivas e perigosas que agridam sua saúde, segurança, integridade e dignidade, estatísticas do Centro Nacional de Análise e Documentação Judicial (Cenadoj) indicam que, por este crime – num país em que mais de 850 mil crianças trabalham - há apenas 31 processos em todo o país. Pior: dos nove casos em que foram emitidas sentenças, três ainda resultaram em absolvição. Os processos judiciais por esta atividade equivalem a insignificantes 0,003% do total das vítimas, o que acaba representando um estímulo ao infrator.

“Há áreas como San Juan Sacatepéquez e San Raymundo onde há muita exploração e trabalhos perigosos para as crianças, porém se tiramos o que estão fazendo, que é perigoso para eles, poderão morrer de desnutrição ou outro tipo de carências”, assinala Leonel Dubón, diretor do Refúgio da Criança.

O estudo “Exploração Sexual Comercial de Meninos, Meninas e Adolescentes”, de Maia Eugenia Villareal, aponta que pela fragilidade da legislação e da própria fiscalização do país, a maior parte dos delitos sequer chega a ser conhecido dos tribunais. Assim, esclarece, “na Guatemala prevalece o medo diante de um sistema jurídico-institucional que culpabiliza as vítimas, às revitimiza e as submete a longas e complexos processos”.