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Carteira de trabalho: símbolo da CLT que os neoliberais temem |
Interesses
financeiros insistem em retirar direitos conquistados pelas lutas dos
trabalhadores, como os assegurados pelo emprego formal
A professora
Magda Barros Biavaschi, desembargadora aposentada do Tribunal Regional do
Trabalho (TRT) da 4ª Região (Rio Grande do Sul) e pesquisadora do Centro de
Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), contesta com veemência a tese segundo a qual a Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT) apropriou-se do discurso dos trabalhadores. Ao
afirmar que o texto lançado em 1943 por Getúlio Vargas tem "profunda
conexão com as necessidades sociais" de seu tempo histórico, ela afirma
que a "vetusta e competente senhora", a CLT – que completará 70 anos
nesta quarta (1) – , tem enfrentado embates com dignidade.
Segundo a
pesquisadora, não se sustenta "teórica e empiricamente" a tese de que
a CLT brasileira se inspira na Carta del Lavoro fascista. O arcabouço
jurídico-institucional trabalhista brasileira, afirma, se construiu a partir do
diálogo com várias correntes de pensamento (socialistas, comunistas,
positivistas, católicos, anarquistas, progressistas, conservadores) e atenta à
"realidade externa e interna", no contexto de um projeto de
modernização da sociedade.
Em novembro
de 2005, Magda Biavaschi defendeu tese no Instituto de Economia da Unicamp para
obter título de doutora em Economia Social do Trabalho. Pesquisou em diversas
fontes, sendo uma das quais as reclamações trabalhistas nas antigas Juntas de
Conciliação e Julgamento (atuais Varas do Trabalho), criadas antes mesmo da
CLT, em 1932. Ela também fez várias entrevistas com o jurista Arnaldo Süssekind
(que morreu há pouco menos de um ano), que integrou a comissão responsável pela
elaboração da CLT, no início dos anos 1940.
Os direitos
sociais vêm sucumbindo "à força bruta" em todo o mundo, afirma a
pesquisadora. No caso brasileiro, adeptos do pensamento único seguem criticando
uma suposta rigidez da legislação trabalhista, que impediria o país de ser mais
competitivo e de ter aumentada a sua produtividade. Esse discurso embute
"cantos de sereia", afirma, tentando fazer com que se trilhem
caminhos "que já se mostraram desastrosos no final do século 19".
A seguir, a
íntegra da entrevista, concedida por e-mail.
Em sua tese,
a senhora diz que a afirmação de que a nossa legislação trabalhista é cópia da Carta
del Lavoro, além de redutora, é insustentável teórica e empiricamente.
Observa que o arcabouço jurídico foi sendo construído a partir do diálogo com
várias linhas de pensamento. Construiu-se, então, um senso comum historicamente
equivocado sobre as origens da CLT?
Não têm sido
poucos os embates que esta vetusta e competente senhora vem enfrentando, aliás,
com muita dignidade. E apesar desses embates e das transformações pelas quais
tem passado, ela resiste. Resiste porque construída em profunda conexão com as
necessidades sociais do tempo histórico em que elaborada, densamente imbricada
na tecitura social brasileira. Somente essa constatação contribui para
desconstituir o mito da outorga ou do roubo da fala dos trabalhadores.
Pessoalmente
ou por meio de seus sindicatos, eram trabalhadores que clamavam pelo
cumprimento das normas de proteção ao trabalho que, a ferro e fogo, estavam
sendo inscritas no arcabouço jurídico de um país de capitalismo tardio, em
referência a João Manoel Cardoso de Mello, em meio ao processo de
industrialização. Tendo com questão primeira demonstrar que a tese da cópia
fascista não se sustenta tanto teórica, quanto empiricamente, com uma lente de
longa duração busquei descortinar o processo de construção de um direito novo,
profundamente social, cujas origens estão fincadas no século 19, e, a seguir, o
de constituição da legislação social do trabalho brasileira.
Foi no
século 19 da Grande Indústria Inglesa, em tempos de capitalismo
constituído, que as condições históricas, sociais e políticas para o nascimento
desse novo ramo do Direito, dotado de fisionomia própria e fundamentado em
princípios forjado no campo das lutas sociais estavam dadas. Direito esse que
nasceu em um cenário em que a natureza do Estado foi sendo modificada e a ordem
burguesa liberal solapada, em um processo que se completa no século 20 e em que
o Estado passa a intervir nas relações econômicas e sociais, produzindo normas.
Nessa
caminhada, chegou-se ao Brasil e às suas especificidades, podendo-se afirmar
que a legislação brasileira de proteção ao trabalho não é cópia da Carta del
Lavoro. E repito: sim, a tese da cópia, para além de redutora, é
insustentável teórica e empiricamente. Aliás, os capítulos segundo e terceiro
ilustram essa compreensão, fundamentada em profunda investigação das fontes
materiais.
Portanto, em
respeito à tua pergunta, afirmo que, analisando com lupa as fontes e com elas
dialogando, constatei que a construção do arcabouço jurídico-institucional
trabalhista brasileiro, pode, em muito, ser tributada à Intelligentsia
dirigente desenvolvimentista, por assim dizer, que, sob a batuta de Getúlio e
dialogando com várias correntes de pensamento presentes na base do governo –
socialistas, comunistas, positivistas, católicos, anarquistas, progressistas,
conservadores – e atenta à realidade externa e interna e às demandas daquele
momento histórico, buscava encontrar caminhos que dirigissem a certa unidade
dentro de um projeto modernizador da sociedade brasileira.
Desconstituir
o mito da cópia fascista não foi trajetória fácil. Até porque, conquanto a
historiografia mais recente sobre a Era Vargas tenha avançado no sentido de um
hibridismo que não se coaduna com rotulações simplificadoras como, dentre
outras, “autoritarismo de Estado”, “fascismo”, “Estado de compromisso”, no
campo do Direito persiste uma bibliografia razoável que, analisando a
legislação trabalhista brasileira insiste em afirmar ser sua matriz a Carta
de Mussolini.
Nesse
sentido, o quanto foi importante o contato com o ex-ministro Arnaldo Süssekind?
Graças às
entrevistas realizadas com o ministro Arnaldo Süssekind, então único integrante
vivo da comissão que elaborou a CLT, conheci as teses aprovadas no 1º Congresso
de Direito Social, organizado em 1941, em São Paulo, pelo professor Cesarino
Júnior, responsável pela cadeira de Direito Social na Faculdade de Direito do
Largo de São Francisco. Muitas delas foram utilizadas pela comissão redatora da
CLT como fonte material imprescindível.
E foi também
assim que me deparei com os processos que tramitaram na antiga Junta de
Conciliação e Julgamento (atual Vara do Trabalho) de São Jerônimo no
final da década de 1930 e inicio da década de 1940, zona carbonífera de grande
prosperidade no período. Examinando essas reclamações vi que, no âmbito do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, destacados juristas, inspirados
em construções jurídico-normativas da época e nas produções doutrinárias de
então, exaravam pareceres pela via da “avocatória” – as reclamações eram
dirimidas pelas Juntas de Conciliação e Julgamento em instância única, porém,
pela via da “avocatória”, as partes, insatisfeitas com a decisão, requeriam ao
ministro do Trabalho que avocasse o feito, remetido, inicialmente, ao ilustrado
corpo de pareceristas como, dentre outros: Evaristo de Moraes, Oliveira Viana,
Joaquim Pimenta, Agripino Nazareth, Oscar Saraiva e, mais tarde, o jovem
Arnaldo Süssekind, que exaravam verdadeiras aulas-fonte da legislação material
e processual que se seguiu –, produzindo, a partir das reivindicações
trabalhistas da época, uma ação concreta no sentido da institucionalização de
regras jurídicas que, contemplando certos princípios, de resto construções
históricas, elevaram os trabalhadores à condição de sujeitos de direitos
trabalhista em um país em luta hercúlea para superar suas heranças
escravocratas, patriarcais e monocultoras. Isso tudo está fartamente
documentado na tese, em especial em seus anexos.
Assim, as
normas de proteção social ao trabalho foram sendo construídas e, com elas,
foram sendo criadas as instituições do Estado com competência para dizê-las e
fiscalizá-las, em um processo em que uma burocracia profissional igualmente era
constituída. Nos processos estudados, que compõe o acervo do Memorial/RS (Memorial
da Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul, cuja comissão coordenadora ela
integra desde 2004), os casos concretos, os conflitos do trabalho, os
pareceres, as regras positivadas, as decisões, a doutrina, formavam um complexo
que interagia, produzindo soluções e impulsionando a criação de novas regras,
em um tempo carente de um Código do Trabalho. Tudo aos olhares atentos do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
No dizer de
Arnaldo Süssekind, lugar da formação de uma jurisprudência pretoriana que,
conquanto administrativa, foi também constitutiva de direitos. Nesse sentido, a
construção da regulação social do trabalho pode ser lida como uma intervenção
extramercado, em um momento em que a humanidade se dava conta de que a ordem
liberal dão dava conta da questão social e, muito menos, da econômica,
sucumbindo, segundo Polanyi, ao assalto de moinhos satânicos. E diante
da crise, aprofundada no entre guerras, a resposta no mundo inteiro foi
antiliberal, com a planificação econômica pelo Estado sendo a regra, quer de
forma democrática, quer de forma autoritária.
E no Brasil?
No Brasil,
esse processo foi tardio, imbricado nas especificidades do desenvolvimento do
capitalismo. Com o dinamismo da economia nucleado pela expansão da acumulação
cafeeira, as grandes fazendas monocultoras faziam uso da mão de obra escrava.
Ao ser introduzido o trabalho “livre”, no processo de substituição do braço
escravo pelo do colono imigrante, fez-se necessária uma “boa lei de locações”,
que, com suas “parcerias” e o envolvimento das famílias dos parceiros no
processo produtivo, barateou o custo do trabalho. Consolidava-se, assim, a
exploração da uma mão de obra barata, em uma sociedade cujo tecido era
costurado com o signo da desigualdade.
Com a Lei
Áurea, um bando de “homens livres”, “errantes”, “banzeiros”, “marginais”,
acumulava-se nas cidades; por outro lado, as políticas de imigração acirravam o
problema da existência de uma massa marginal, com seu inegável potencial
reprodutor. Situação que a Lei dos Dois Terços procurou superar. A década de
1930 marca a pujança de uma produção normativa trabalhista, Direitos de longa
data reivindicados passam a ser reconhecidos e, nesse processo, vão sendo
institucionalizados pelo Estado, tendo no voto universal e na Lei dos Dois
Terços momentos iniciais de grande relevância. Esse processo, que passou pela
construção da CLT e pela criação de uma Justiça especializada para dizer o novo
Direito que se constituía, culminou com a Constituição cidadã de 1988,
promulgada em meio à crise do Estado de bem-estar.
À crise dos
gloriosos 30 anos de um capitalismo regulado, a resposta em vários cantos do
mundo foi liberal, com algumas exceções. Dessa forma, ao embalo desses ventos,
os direitos sociais e as instituições republicanas passaram a padecer à ação da
força bruta da um capitalismo destrutivo, sem peias. O Direito do
Trabalho e, no caso da nossa aniversariante, a CLT, inserem-se nessa
complexidade. Pensada no início da década de 1940, a CLT foi abrangente e
ousada, como é exemplo o artigo 2º, § 2º que trata da solidariedade das
empresas que compõem o grupo econômico, dentre outros institutos que permanecem
atuais.
É falsa ou
contestável a afirmação, também corrente, de que Vargas, ao estabelecer
direitos trabalhistas, em contrapartida criou um sistema de controle dos
sindicatos, de atrelamento automático ao Estado?
Não se pode
olhar para a história com uma única lente que “chapa” a visão e impede que se
compreenda a sociedade e seus processos com sentido de profundidade, de
terceira dimensão. A grande crítica que certos analistas fazem ao Decreto
Sindical de 1930 é a de que instituiu o sindicato único, com inspiração, dizem eles,
fascista. Mas aqui fico com Süssekind, acompanhado, nesse aspecto, por Evaristo
de Moraes Filho. A comissão que redigiu o decreto datado de 1931, que tratou da
organização sindical e instituiu o sindicato único, era composta por renomados
juristas, comunistas, socialistas, positivistas, anarquistas, atentos às
reivindicações e aos princípios da época. Como salientou Evaristo de Moraes
Filho em relação à equipe que elaborou o Decreto em questão, de março de 1931:
[...] era
formada de velhos lutadores sociais, antigos socialistas, lutadores
socialistas, e, não raro, anarquistas, em prol das reivindicações dos
trabalhadores nos tempos chamados heróicos, anteriores a 30. Nenhum deles era
de formação corporativista, muito menos fascista (Estado e sindicatos no
Brasil. Os mecanismos de coerção sindical. (O Estado de São Paulo, São
Paulo, 20 nov. 1986).
Quanto à
equipe propriamente dita, destaca que um de seus méritos foi o de incorporar
antigos líderes e lutadores socialistas, como Agripino Nazareth, Evaristo de
Moraes Joaquim Pimenta, Carlos Cavacco, Deodato Maia:
[...]
Agripino tomou parte na célebre revolta dos sargentos, anarquista, de 1918, e
comandou a maior greve na Bahia de 1919. Pimenta foi o maior agitador no
Nordeste na década de 10. Carlos Cavacco, gaúcho, socialista, ainda como
auxiliar do próprio Collor foi preso como agitador em Fortaleza, durante o ano
de 1931. Nenhum dos colaboradores de Collor era de direita ou favorável a
qualquer manifestação corporativo-fascista. [...] O próprio Deodato Maia, o
mais tranqüilo deles, já havia escrito um pequeno ensaio “A Regulamentação do
Trabalho”, livro de 1912, reunindo seus discursos como deputado federal em
favor dos trabalhadores.
Portanto,
penso que precisamos olhar para história com essa perspectiva. Aliás, os
processos que compõem o acervo do Memorial da Justiça do Trabalho no Rio Grande
do Sul, contam com riqueza essa história. Por outro lado, os anais da Câmara
dos Deputados brasileira das décadas de 1917, 1918, 1019, em meio à discussão
sobre um Código do Trabalho e as dificuldades de aprová-lo, mostram que uma das
reivindicações dos trabalhadores, em especial no período das greves, era a de
um sindicato único, contestado pelo poder econômico que apontava para um
monopólio sindicato e contrapropunha uma organização sindical por empresa.
A senhora
também afirma (nas considerações finais) que, hoje, os direitos sociais parecem
sucumbir à força bruta de um capitalismo desumano, em um contexto de
globalização neoliberal. Nesse sentido, a CLT seria um instrumento de
resistência? Até que ponto as reformas na estrutura estatal, a partir dos anos
1990, atingiram o conteúdo da legislação do trabalho?
Minhas
considerações finais foram escritas em 2005. Da lá para cá, no Brasil, houve
mudanças visíveis, sobretudo a partir da crise mundial de 2008, gerada pela
overdose de um capitalismo sem peias. Graças à ação do governo, às políticas
anticíclicas, à ação dos bancos públicos, à redução de juros, às políticas de
estímulo ao crédito, enfim, criaram-se as condições para mais bem se enfrentar
a crise. Ainda que hoje se constate redução do PIB, e conquanto os dados da
indústria preocupem, no mundo do trabalho a situação é de pleno emprego e
melhoria da renda. Milhares saíram da linha da pobreza e muitos jovens saem da PEA
(população economicamente ativa) para estudar, em face das políticas de
estímulo a tanto.
Continuamos,
é verdade, devendo para a desigualdade social, para uma Justiça que cumpra,
para regras que garantam o emprego e reduzam a rotatividade de mão de obra. Mas
a melhoria é real. Ampliou-se a formalidade. Reduziram-se inseguranças. Mas os
profundos conflitos e tensões permanecem. Os interesses financeiros mundiais se
afirmam com seus efeitos deletérios dada ação de um capitalismo movido por seu
insaciável desejo de acumulação da riqueza abstrata, nas corretas reflexões do
professor (Luiz Gonzaga) Belluzzo.
No final do
governo FHC, houve uma tentativa de “flexibilização” da CLT, a partir de
alterações no artigo 618, permitindo que o negociado prevalecesse sobre o
legislado. A iniciativa fracassou, mas a tese segue sendo defendida por muitos
especialistas e atores sociais. O que a senhora pensa a respeito? A CLT pode
ser mantida como a conhecemos hoje, com atualizações, ou deveríamos pensar em
um novo código do trabalho?
Em boa parte
do mundo, os direitos sociais continuam a sucumbir à força bruta. Em nosso
país, certos adeptos do pensamento único continuam a insistir na “quebra” da
alegada rigidez da CLT para que o país seja competitivo e a produtividade
aumente, apontando para a negociação coletiva como espaço normativo
privilegiado, ao argumento, renovado, de que é nas brechas do mercado que o
Estado deve regular.
Tanto as
propostas mais recentes de retomada do primado do encontro das “vontades
livres” quanto o projeto de lei que busca regulamentar a terceirização, o PL
4.330 (projeto do deputado Sandro Mabel, do PMDB-GO, em discussão na
Comissão de Constituição e Justiça da Câmara), são cantos da sereia que
insistem em que se trilhem caminhos que já se mostraram desastrosos no final do
século 19, sucumbindo à evidência de que as “mãos invisíveis” têm dono e que os
interesses abstratos do dinheiro atuam como uma avalanche quando não há diques
suficientes para detê-los. Esse receituário continua sendo oferecido nesta
quadra da humanidade, ainda que seus destrutivos se tenham mostrado
insustentáveis, tornando evidente que ao se atribuir ao mercado a direção dos
destinos dos homens se os despoja de suas instituições, levando-os a sucumbir
ao assalto de moinhos satânicos.