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Ronnie Kasrils, veterano combatente antiapartheid |
Ronnie Kasrils denuncia que “política de terrorismo de Estado de Israel é ainda pior do que a dos racistas sul-africanos”
Em seu “Livro das
perguntas”, Pablo Neruda indaga: “Por que as árvores escondem o esplendor de
suas raízes?”. E como se respondesse à inquietação do poeta chileno e ignorasse
a minha pergunta, Ronnie Kasrils, sul-africano de pais judeus de origem russa, nascido
em Joanesburgo, veterano militante da causa antiapartheid e ex-ministro de
Nelson Mandela, iniciou a entrevista exclusiva mostrando o longo caminho
percorrido até o Fórum Social Mundial Palestina Livre em Porto Alegre. Da mãe, “doce,
solidária e humanista”, aprendeu que a segregação a que os negros eram submetidos
na África do Sul, com suas mais variadas formas de abuso e violência, “era o
mesmo tipo de veneno imposto aos judeus na Europa”. Seu pai, um caixeiro viajante,
vendedor de balas e doces para as segregadas e miseráveis comunidades negras,
logo se converteria numa das principais lideranças sindicais da África do Sul.
Desta combinação surgiu a indignação e o desejo da mudança. Daí até a
militância clandestina, estimulado por uma prima comunista, foi um passo. A
pele branca caiu como uma luva para as necessidades do movimento antiapartheid,
até que foi banido de falar em público, de ir às fábricas, de reunir-se com
mais de três pessoas e, finalmente, ficar desempregado. “A partir de então os
racistas me deixaram com todo o tempo livre para me dedicar à luta contra o
apartheid sul-africano”. Por sua luta, Ronnie Kasrils foi reconhecido como
“herói judeu”, título cassado após ter se pronunciado “contra o apartheid de
Israel”. Dirigente do Congresso Nacional Africano (ANC), Ronnie esteve reunido
com Che Guevara, participou ativamente ao lado de vários combatentes pela
libertação do Continente, como Agostinho Neto, de Angola, e Samora Machel, de
Moçambique, e foi ministro de Nelson Mandela. “A política de terrorismo de
Estado de Israel é ainda pior do que a do apartheid sul-africano, pois o regime
de segregação racial não cercava os bantustões – locais onde os negros eram
concentrados e apartados da sociedade branca -
nem os bombardeava com mísseis. Israel ergue muros e pratica crimes
diariamente, covardemente, sem trégua, contra idosos, mulheres e crianças. Como
disse certa vez um comandante militar israelense ao ver as barbaridades
praticadas contra a aldeia de Deir Yassim, Israel está repetindo os nazistas”.
No auditório da Fecosul,
Ronnie debaterá na próxima sexta-feira (30) sobre a Luta Palestina
Anti-Apartheid – desafios, modelos e estratégias para a paz justa.
Abaixo,
a íntegra da entrevista, que contou com a colaboração de Leonardo Vieira.
Como foi a sua
participação na luta contra o apartheid na África do Sul?
A luta política contra o
apartheid era pela não-violência, até que em março de 1960 um protesto pacífico
em frente a uma delegacia de polícia foi banhado em sangue. O massacre deixou
69 mortos e representou um divisor de águas. Diante da brutal violência e
repressão, discutimos que não havia outro caminho se não a resistência armada.
Mandela me indicou como membro do comando de Durban e iniciamos ações que
tinham como alvo os símbolos do apartheid, como os “Escritórios de classificação”
onde os negros eram catalogados.
Catalogados de que forma?
Os racistas tinham 14
classificações diferentes para distinguir a inferioridade das raças. Iniciava
pelo europeu e ia até o bantu, o mais negro de todos. Se uma pessoa dissesse
que era branca eles olhavam as unhas, os dentes, como os nazistas faziam. Se um
imigrante viesse do Líbano, devido à colonização europeia, era classificado
como branco, se viesse da Síria era colorido. Atacávamos estes escritórios de
classificação com uma regra: nunca matar ninguém. O objetivo era colocar abaixo
os símbolos da opressão e do racismo. Isso inspirou muita gente a lutar e
serviu como alerta ao regime de que era preciso mudar.
Foi um longo período de
resistência até a realização das eleições e a vitória de Mandela em 1994.
Foram décadas de muita
luta, pois os racistas não estavam dispostos a ceder. A repressão se desatou
forte, com muitos militantes presos, torturados até a morte ou exilados. Neste
período contamos com grande solidariedade de Angola e Moçambique para
reconstruir nossa rede clandestina, que era então a única forma possível de
luta.
Quais foram os pilares
desta reconstrução?
Foram quatro pilares. O
primeiro foi o motor da luta política, o povo como força que lidera o processo,
com o sindicalismo à frente, com atuação destacada de jovens, mulheres e grupos
culturais. O segundo pilar foi a montagem da rede clandestina, desde a
propaganda, com a entrega de panfletos, até a infraestrutura para os
combatentes. O terceiro foi a ação armada, com referência na atuação de Mao
Tsé-Tung e de Che Guevara. O quarto foi a solidariedade internacional.
E a reunião com Che
Guevara?
Eu me encontrei com Che em
Dar-es Salaam, na Tanzânia, numa reunião em que também estavam Agostinho Neto,
de Angola, e Samora Machel, de Moçambique. A concepção do Che e dos cubanos era
bolivariana, de todos os líderes assumirem o internacionalismo da causa e
contribuírem para a libertação de cada país como se fosse o seu próprio. Era
esta a sua pregação e foi este o seu compromisso até o fim.
Fazendo um paralelo com o
momento da derrubada do apartheid na África do Sul, como vês o papel da
solidariedade internacional contra a política de terrorismo de Estado e
segregação levada a cabo pelo governo de Israel?
O movimento antiapartheid
nos deu um tremendo apoio e impulso em vários momentos em que a situação
interna estava extremamente complicada. Foi uma contribuição inestimável para
enfraquecer e isolar os racistas, pois unia gente de todas as origens e
classes. Vale lembrar que era um Estado muito poderoso, com mais de cinco
milhões de brancos. Nenhuma colônia teve tantos brancos, com raízes no país há muitos
anos, grande exército, economia industrial com abundantes recursos minerais. E
os Estados Unidos e a Europa como defensores, com Ronald Reagan e Margaret
Thatcher à frente. Ao mesmo tempo, os negros eram submetidos à pobreza mais
abjeta, à ignorância profunda, com o regime estimulando a divisão por tribos
para melhor manipular. Se você fosse mestiço ou indiano já era capataz, era assim
que funcionava. Diante deste quadro interno, a solidariedade trazia esperança.
Neste momento, a adoção de
uma política de boicote, desinvestimento e sanções não seria um caminho natural
para chamar o governo israelense à razão?
Acredito na efetividade do
boicote quando ele chega no bolso, pois é onde dói, ajudando as pessoas a
abrirem os olhos e potencializar a resolução desta situação insustentável. Com
o boicote e as sanções, os acadêmicos israelenses que se sentem naturalmente orgulhosos
de suas conquistas repensarão o alto preço pago pelos palestinos. Se houver
boicote de armas e sanções militares, estará minada a capacidade de agressão de
Israel.
Conte um pouco da sua
trajetória.
Eu tive de sair da África
do Sul em 1963. Tive treinamento militar na União Soviética e em Cuba. Passei
pela Tanzânia, Londres, Angola e Moçambique como chefe do braço armado do
Congresso Nacional Africano até 1990. Fui ministro de Defesa Adjunto de Mandela
até 1994, ministro de Águas e Florestamento em 1999, ministro da Segurança em
2004 até 2008, quando saí do governo. Sempre fui muito incisivo contra a
agressão israelense, ainda mais por ser descendente de judeus, e me tornei um
alvo para Israel e para os sionistas. Visitei oficialmente a Cisjordânia e a
Faixa de Gaza onde pude ver o quão absurda é a manutenção deste criminoso
regime de segregação.
O que sentiste ao visitar
os territórios ocupados por Israel?
Tanto em Gaza quanto na
Cisjordânia senti uma espécie de dejà vu, era como se estivesse de volta ao regime
de apartheid. Na verdade, o que é feito contra os palestinos é ainda pior do
que o apartheid sul-africano. Porque por mais brutal que fosse o regime, na
África do Sul não se bombardeavam os bantustões, nunca houve o uso de
helicópteros, mísseis e tanques. Nas operações, os racistas quebravam portas,
prendiam, torturavam, mas isso durava duas semanas, nunca indefinidamente, como
acontece na Palestina. Estive em 2004 com Yasser Arafat na sede da presidência
da Autoridade Nacional Palestina (ANP) em Ramalah e ele me disse “não está
vendo o meu bantustão?” Eu respondi que aquilo não era um bantustão e todos me
olharam assombrados, como seu eu tivesse relativizando a gravidade da situação.
Mas logo eu respondi que o local era pior do que um bantustão, porque eles
nunca foram bombardeados nem nunca houve muros ao seu redor.
Uma segregação sem
limites.
Qualquer ser humano de bom
senso se sente extremamente chocado com tamanha selvageria. A situação é ainda
mais impressionante quando tais crimes são reproduzidos por pessoas descendentes
dos que sofreram o holocausto. Minha mãe, sempre muito doce, me ensinou os
valores da vida e diante do que via sendo feito com os negros sul-africanos
dizia que as pessoas, quando são submetidas a uma lavagem cerebral, se tornavam
nazistas. Quando viu as crianças palestinas assassinadas na aldeia de Deir
Yassin, em 1948, Cizling, um chefe israelense, disse: “Agora nos comportamos
como nazistas”. É inadmissível que alguém com origem judaica perverta desta
forma os ideais humanistas e passe a agir como monstro, praticando punições
coletivas.
De que forma o Fórum pode
contribuir para colocar um ponto final nesta sucessão de crimes?
O Fórum Social Mundial
Palestina Livre tem um significado histórico de mobilização da sociedade,
principalmente neste momento em que cresce a pressão internacional para que a
ONU reconheça o Estado palestino como membro pleno. O fato de que esta
solidariedade internacional seja um movimento pacífico mostra o seu intenso
valor moral. O fim do apartheid de Israel contra os palestinos vai beneficiar
não só os israelenses, mas também os judeus pelo mundo afora, a exemplo do que
ocorreu quando caiu o regime de segregação na África do Sul. Muito diferente de
representar uma ameaça, o fim do apartheid liberou os sul-africanos do peso das
correntes de uma histeria militar e conquistou uma harmonia para toda a África,
com progresso e segurança para todos. Tamanhos benefícios só podem vir com uma
solução justa. Vale lembrar que na era dourada do Islã e do judaísmo houve uma
convivência harmoniosa, de elevada solidariedade.
Da mesma forma que Estados
Unidos, Inglaterra e Israel se alinhavam na ONU para blindar o regime de
apartheid da África do Sul, hoje os EUA e a Europa Ocidental se empenham na
defesa dos crimes do Estado de Israel. Qual a sua leitura sobre isso?
O interesse econômico e
geopolítico explica as razões de tamanho apoio dos EUA e dos países da Europa
Ocidental, mas os israelenses têm de repensar essa dependência total, porque o
mundo está mudando. Israel é muito pequena dentro de um mundo árabe enorme.
Será melhor para todos que o governo de Israel saia deste jogo perigoso e
busque uma convivência harmoniosa com a região.
Começou a contagem
regressiva para o final do apartheid de Israel?
Atualmente converso com
ministros do tempo do apartheid na África do Sul e pergunto: o que te fez
mudar? E um ministro muito importante me respondeu que havia sido quando o banco
Barclay, da Inglaterra, anunciou que iria sair do país. Então, disse ele, é o
fim pra mim, não tem mais jeito. O início do fim ocorreu portanto quando o
banco do colonialismo inglês, sofrendo as intensas pressões internas, com as
mobilizações, e internacionais, com a onda de solidariedade, após 200 anos,
deixou o país. Isso ajudou a mudar a corrente de opinião.